quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Como uma vírgula acabou com um namoro no dia dos namorados

Conta-se que, em Palmeirinha do Vale, cidade de dezessete mil viventes, que se situa perto

de Santana do Arrebol do Oeste, havia uma professora de português, extremamente rígida, de

nome Austeresa de Jesus. Ela era de tal modo rigorosa para com os alunos que estes temiam

encontrá-la mesmo no dia-a-dia, na praça central, na mercearia, na farmácia.

Dizem que ela interpelava seus pequenos educandos, estivessem onde estivessem, sobre as mais

variadas regras gramaticais. Ai de quem não soubesse a resposta: ela sacava seu caderninho

rosa, anotava o nome da vítima, a pergunta que lhe fizera, a resposta dada --ou a falta

dela-- e o quanto valia relativamente à nota escolar.

Dependendo do grau de dificuldade da pergunta, ela diminuía 0,1, 0,2 ou 0,5 da nota que o

aluno tirasse na prova seguinte. Era um suplício para as pobres crianças palmeirinhenses.

Quando Austeresa era jovem, enamorou-se de um rapaz bem-apessoado, também professor de

português, de nome Telos Alonso. Ele, porém, não tinha a mesma capacidade intelectiva dela

nem a mesma habilidade em sala de aula nem a mesma rigidez. Era um moleirão a bem dizer, que

nem gostava muito de estudos aprofundados. As maldizentes até comentavam que ele não era

homem para uma mulher como Austezinha, como a chamavam carinhosamente.

O namoro entre eles durou exatamente onze meses e vinte e sete dias. O estopim para o

término do relacionamento foi um cartão que ele lhe mandara no dia dos namorados em que

escrevera "Para a minha namorada Austereza de Jesus". Ao ler esses dizeres, quase teve uma

síncope; chegou a perder o juízo. Pegou de uma caneta e imediatamente escreveu-lhe uma

pequena carta, em que dizia:

"Telos Alonso, é de conhecimento geral em Palmeirinha que tolero os maiores sofrimentos, que

suporto as maiores provações. É, no entanto, também comentário corrente que há duas

situações que jamais enfrentarei: traição e erro gramatical. E você, meu ex-amado, acabou de

cometer ambos: você, professor de português, sabe muito bem que os nomes próprios femininos

formados pela posposição do sufixo -esa ao radical se escrevem com S, não com Z.

Como meu namorado há quase um ano ainda erra meu nome, trocando letras? Não me importo tanto

pelo erro de meu nome, mas importo-me --e muito-- com o trocar letras. Poderia ter-me

chamado de Austerise; não me atenazaria tanto, pois teria usado as letras adequadas: nomes

femininos terminados em -ise se escrevem com S, como Denise e Anelise; mas ignorar que se

escrevem com -ês e -esa nomes de pessoas, como Inês, Teresa e o meu, logicamente, Austeresa,

adjetivos pátrios, como português e portuguesa, e títulos sociais ou nobiliárquicos, como

camponês e camponesa, marquês e marquesa e ainda princesa, a maneira como me tratava, é

demais para mim.

Fico agora a pensar: cada vez que me chamava de princesa, sua mente produzia princeza? Não.

É demais para mim. Não suporto tal provação. E a traição? Como a descobri? Você mesmo se

delatou: '...minha namorada Austereza'. Assim escreveu você; sem vírgula. Assim escolheu me

mostrar que tem outra namorada. Não teve coragem de me contar pessoalmente, contou-me por

subterfúgio, e eu entendi.

Ao não colocar vírgula entre meu nome e o substantivo que ele especifica, mostrou-me que não

sou a única. Se o fosse, ter-me-ia escrito '...minha namorada, Austeresa', com vírgula.

Muito perspicaz foi você, dar-me a conhecer uma situação por meios gramaticais: substantivo

próprio que especifica substantivo comum, sem vírgula entre eles, restringe, ou seja, há

mais de um: 'Professora Austeresa', sem vírgula, pois não sou a única professora, há muitas;

mas substantivo próprio que especifica substantivo comum, com vírgula entre eles, explica,

ou seja, só há um: '...minha namorada, Austeresa', com vírgula; eu seria a única, mas não o

sou; sei-o agora.

Aliás, nem me importo mais com o namoro. Mesmo não havendo a traição, não quero mais tê-lo

como namorado, pois dois erros de português em uma única frase cometidos por um 'professor

de português' é demais para mim. Adeus."

Nota do autor: Isto nem Austeresa atinou: o substantivo telo, na cidade

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